terça-feira, 14 de agosto de 2018

Urias


URIAS

Urias Corrêa Arantes. O Urias foi meu colega de classe no curso clássico do Colégio Estadual Presidente Roosevelt, período noturno, de 62 a 64.

Tornamo-nos grandes amigos e era comum, sobretudo quando havia aula de Filosofia com o Prof. Pinheiro, subirmos a rampa da rua São Joaquim, onde ficava o colégio, alcançarmos a Av. Liberdade e caminharmos até o Centro. Lá chegávamos até o Anhangabaú e ele deveria tomar o ônibus Jabaquara e eu o Pinheiros.

Mas não. Ficávamos ainda conversando nas escadas do Viaduto do Chá e acabávamos pegando a Nove de Julho em direção à minha casa. Atravessávamos o túnel, entrávamos na Av. Brasil e chegávamos de manhãzinha à minha casa, onde minha mãe, com cara de poucos amigos, nos recebia com uma certa má vontade.

Mas do que falávamos, afinal? Ele era protestante, e eu, um judeu sem religião, sem acreditar em Deus, em vida após a morte, em céu ou inferno. O ceticismo me acompanha desde a mais remota adolescência.

Certa vez, contei-lhe que havia conhecido uma menina. Ela estudava no Roosevelt, à tarde, e ocupava a minha carteira. Aí a gente começou a trocar bilhetinhos e finalmente marcamos um encontro na Biblioteca Municipal.

- Foi uma sensação que não sei explicar, disse eu.

E ele retrucou:
- Como não sabe explicar? Você é articulado, lê pra burro, tem um vocabulário mais do que suficiente. Vai explicar, sim.

Só me restou explicar, tintim por tintim, o que senti. Pra ser sincero, não senti muita coisa, não.

- Um dia você vai dobrar a esquina e dar de cara com Deus, dizia ele.
- Tudo bem, respondia eu, se acontecer eu mudo de opinião.
Até agora, nada. Quantas esquinas eu já terei dobrado na vida?

Nos fins de semana, costumávamos marcar encontro em frente ao Mappin. Uma noite, era um sábado, ele não veio. Eu fiquei furioso, mas ele candidamente justificou:
- Se nós não fôssemos tão amigos, eu não teria faltado. Mas eu sei que você vai me desculpar. Ou não vai?
Desculpei.

Fizemos cursinho para Direito, no Tolosa, mas quando chegou o fim do ano, ele mudou de opinião e resolveu fazer Filosofia pura, na PUC. Em segui em diante e prestei vestibular na São Francisco.
Continuamos a nos ver, agora já não mais com tanta frequência, até que um dia – era 1967 – ele me convidou para ir embora do Brasil. 

Estávamos ambos no 3º ano da Faculdade. Aliás, eu fazia dois cursos ao mesmo tempo: Direito de manhã na São Francisco e Letras Anglo-Germânicas à noite, na Maria Antônia.

- Você topa? ele perguntou.
- Não topo, respondi. Arranjei uma namorada, passei no concurso do Cursinho do Grêmio, vou começar a ganhar uma graninha e afinal, eu estou no meio de dois cursos.
- Eu também estou no 3º ano, tenho uma namorada e um emprego, mas eu vou, ainda que sozinho.

E ele foi. Passou quase dois anos viajando pela América do Sul e só me escrevia quando estava borracho ou com bronquitis tabáquica. Nunca dava o endereço, com medo que eu o entregasse aos pais e estes viessem buscá-lo.

Voltou magérrimo. Ficou em casa um tempo para se recuperar e depois foi para a casa dos pais em São José dos Campos. Eu passei uns dias ali.

Acho que foi a última vez que o vi. Soube depois que ele foi para a França e parece que está lá desde então.

Gostaria imensamente de revê-lo. Sei que não seria a mesma coisa. 50 anos depois, não seríamos mais o Urias e o Israel da década de 60. Mas a saudade, ó!

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