sábado, 27 de setembro de 2014

No início do ano passei duas semanas em Portugal e Espanha. Entre igrejas, capelas, basílicas e catedrais, visitei 354; conventos, mosteiros e santuários, foram 122. Me embasbaquei com todos. Sem dúvida, a maior obra da Igreja são as igrejas.
Depois dessa viagem eu me converti: agora sou devoto de São Bacalhau, Santa Paella e Nossa Senhora do Vinho Tinto. Comi tanto bacalhau que resolvi escrever a receita que vai abaixo.
BACALHAU À FERNANDO PESSOA
Ingredientes (para 4 pessoas)
500 g de bacalhau
4 colheres de sopa de azeite
½ k de batatas
4 ou 5 cebolas
5 ovos
2 dentes de alho
1 colher de sopa de salsa picada
Azeitonas pretas
Sal e pimenta a gosto

Sopra alto o vento lá fora. Virão para a ceia os amigos que convidei?  O Alberto certamente há de cá estar na hora aprazada. Ele é sempre o primeiro a saudar-me quando nos encontramos no Café A Brasileira.
- Dá-me cá um abraço, ó Poeta! diz ele, com seu jeito simples de camponês de pouco estudo. E emenda para o garçom:
- Ó Joaquim, uma bica, se faz favor.
Alberto é alfacinha, isto é, nasceu em Lisboa mas mora no campo, numa casita que lhe deixaram os pais. Solteiro, mora com uma tia velha, e raramente vem à capital. 
- Para que quero eu ver carros e bondes, ruas e avenidas? Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no universo. Por isso minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer, inclusive Lisboa, se me permitem a ousadia.
- Perdoamos, perdoamos, respondia Ricardo. Mas dize-me cá, ó pegureiro: se não bebes nada além de café – o que é uma ofensa ao conhaque - e nem tiras umas baforadas a um belo charuto, ad qui venisti?
- O nosso doutor está a perguntar, Alberto, por que vens ao café se não bebes nem fumas? explica Álvaro.
- Para tomar café, ora pois!
Ricardo é, de certa maneira, o oposto de Alberto. Nascido no Porto de família abastada, formou-se em medicina em Coimbra, mas jamais exerceu a profissão.
- Disso não poderão jamais acusar-me! dizia ele. De facto, tinha horror a sangue.
Educado num colégio de jesuítas, suas aulas eram todas em latim, o que lhe aguçou o apetite pela poesia clássica. Horácio é o seu poeta preferido e volta e meia ele desanda a declamar trechos do Pastor cum traheret, O matre pulchra filia pulchrior, Carpe diem etc. Pessoalmente, acho seu estilo um tanto purista demais, mas, claro, jamais me atreveria a dizer-lho.
- Segue o teu destino, Alberto, e rega lá as tuas plantas. Ama as tuas rosas, que o resto é a sombra de árvores alheias.
Alberto apenas sorri e provoca:
- No fundo, Álvaro, aspiras ser o que já sou.
Álvaro se exalta. Ele vive exaltado:
- Alberto, meu mui querido campônio, tu é que me conheces de verdade. Sabes que não sou nada e que nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Fora isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Álvaro é o mais explosivo dos meus convidados. Diz-se um vanguardista e cosmopolita. Ele lembra muito o Jacinto de Thormes, de A Cidade e as Serras, do nosso imortal Eça. Suas ideias futuristas cheiram a progresso e a civilização. Fuma desbragadamente.
- Olha que o fumo há de fazer-te mal, homem! costuma adverti-lo Ricardo, o nosso esculápio arrependido.
- Ora, ora, Doutor, enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. Eu saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos e de todas as especulações.
- Tu é quem sabes, Álvaro, responde Alberto. Os pulmões são teus.
Bem, é tempo de preparar-lhes o jantar. São sete horas da tarde e os convivas hão de chegar por volta das 8. O que preparar para tão díspares seres? Migas com carne de porco? Alberto por certo aprovaria a escolha, mas e os demais? Ricardo torceria o nariz a este festival de costeletas de porco, toucinho, entrecosto e banha. Carré de borrego à dordonhesa? Além de trabalhoso, vai nos ingredientes pâté de fígado trufado. Eu não tolero pâté, que me desculpem os amigos. Tudo, menos pâté.
Acabei optando pelo prato nacional de nossa terra: o bacalhau. Não há português que não aprecie o bacalhau, com iscas ou sem elas! Resolvi, no entanto, fazê-lo à minha moda, sem sofisticação porém com esmero. Na verdade, já ontem pusera o peixe de molho, em água fria, com a pele virada para cima. Hoje cedo, ainda antes do desjejum, retirei-lhe a pele e as espinhas. Depois, envolvi as lascas num pano e esfreguei-as sobre uma mesa. Deste jeito, o meu bacalhau fica em fios.
Agora é hora de descascar as batatas. Meio quilo há de bastar. Vou lavá-las, é claro, e cortá-las em palha. É para isso que tenho um moinho. A seguir, vou lavar novamente as batatas em várias águas, escorrê-las e enxugá-las num pano. Há que deixá-las bem sequitas.
Vou usar dois – não, três – dentes de alho. É preciso descascá-los e picá-los.
As cebolas, quatro ou cinco, vou cortá-las em rodelas finíssimas, que assim me ensinou minha mãe.
A campainha tocou. Chegaram juntos, vindos do Brasileira. Álvaro com seu inseparável charuto, Ricardo com o Jornal do Comércio dobrado em quatro no bolso do paletó e Alberto, de guarda-chuva.
- Passem, passem. Fiquem à vontade, sirvam-se do que lhes aprouver. O jantar já vai à mesa.
- O que teremos hoje? indagou Álvaro.
- É esperar e ver, é esperar e ver, respondi da cozinha.
Mais alguns minutos e vou levar o azeite ao lume numa frigideira. Quando estiver quente, vou juntar-lhe os dentes de alho e assim que o alho começar a alourar, vou adicionar as batatas, para fritá-las ligeiramente. Com um garfo, vou mexê-las sem parar para que não fiquem coladas umas às outras.
Tiro agora as batatas e, na mesma gordura, alouro as cebolas e, em seguida, o bacalhau, misturando tudo por cinco minutos.
- Cinco minutos mais, grito eu.
 Agora é o momento de introduzir as batatas novamente na frigideira, mexendo e regando com os cinco ovos que já bati e temperei com sal e pimenta. Há que mexer sem parar sobre lume médio – eis o segredo. Assim os ovos ficarão macios – eu espero.
Pronto. Levo o bacalhau à mesa, polvilhado com salsa picada e enfeitado com azeitonas pretas.
- E o vinho? perguntam todos, exceto o Alberto.
- Vou buscar, vou buscar.



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