No início do ano passei duas semanas em
Portugal e Espanha. Entre igrejas, capelas, basílicas e catedrais, visitei 354;
conventos, mosteiros e santuários, foram 122. Me embasbaquei com todos. Sem
dúvida, a maior obra da Igreja são as igrejas.
Depois dessa viagem eu me converti: agora sou
devoto de São Bacalhau, Santa Paella e Nossa Senhora do Vinho Tinto. Comi tanto
bacalhau que resolvi escrever a receita que vai abaixo.
BACALHAU
À FERNANDO PESSOA
Ingredientes
(para 4 pessoas)
500
g de bacalhau
4
colheres de sopa de azeite
½
k de batatas
4
ou 5 cebolas
5
ovos
2
dentes de alho
1
colher de sopa de salsa picada
Azeitonas
pretas
Sal
e pimenta a gosto
Sopra
alto o vento lá fora. Virão para a ceia os amigos que convidei? O Alberto certamente há de cá estar na hora
aprazada. Ele é sempre o primeiro a saudar-me quando nos encontramos no Café A
Brasileira.
-
Dá-me cá um abraço, ó Poeta! diz ele, com seu jeito simples de camponês de
pouco estudo. E emenda para o garçom:
- Ó
Joaquim, uma bica, se faz favor.
Alberto
é alfacinha, isto é, nasceu em Lisboa mas mora no campo, numa casita que lhe
deixaram os pais. Solteiro, mora com uma tia velha, e raramente vem à
capital.
-
Para que quero eu ver carros e bondes, ruas e avenidas? Da minha aldeia vejo
quanto da terra se pode ver no universo. Por isso minha aldeia é tão grande
como outra terra qualquer, inclusive Lisboa, se me permitem a ousadia.
-
Perdoamos, perdoamos, respondia Ricardo. Mas dize-me cá, ó pegureiro: se não
bebes nada além de café – o que é uma ofensa ao conhaque - e nem tiras umas
baforadas a um belo charuto, ad qui
venisti?
- O
nosso doutor está a perguntar, Alberto, por que vens ao café se não bebes nem
fumas? explica Álvaro.
-
Para tomar café, ora pois!
Ricardo
é, de certa maneira, o oposto de Alberto. Nascido no Porto de família abastada,
formou-se em medicina em Coimbra, mas jamais exerceu a profissão.
-
Disso não poderão jamais acusar-me! dizia ele. De facto, tinha horror a sangue.
Educado
num colégio de jesuítas, suas aulas eram todas em latim, o que lhe aguçou o
apetite pela poesia clássica. Horácio é o seu poeta preferido e volta e meia
ele desanda a declamar trechos do Pastor
cum traheret, O matre pulchra filia pulchrior, Carpe diem etc.
Pessoalmente, acho seu estilo um tanto purista demais, mas, claro, jamais me
atreveria a dizer-lho.
-
Segue o teu destino, Alberto, e rega lá as tuas plantas. Ama as tuas rosas, que
o resto é a sombra de árvores alheias.
Alberto
apenas sorri e provoca:
-
No fundo, Álvaro, aspiras ser o que já sou.
Álvaro
se exalta. Ele vive exaltado:
-
Alberto, meu mui querido campônio, tu é que me conheces de verdade. Sabes que
não sou nada e que nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Fora isso,
tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Álvaro
é o mais explosivo dos meus convidados. Diz-se um vanguardista e cosmopolita.
Ele lembra muito o Jacinto de Thormes, de A
Cidade e as Serras, do nosso imortal Eça. Suas ideias futuristas cheiram a
progresso e a civilização. Fuma desbragadamente.
-
Olha que o fumo há de fazer-te mal, homem! costuma adverti-lo Ricardo, o nosso esculápio
arrependido.
-
Ora, ora, Doutor, enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. Eu
saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos e de todas as
especulações.
-
Tu é quem sabes, Álvaro, responde Alberto. Os pulmões são teus.
Bem,
é tempo de preparar-lhes o jantar. São sete horas da tarde e os convivas hão de
chegar por volta das 8. O que preparar para tão díspares seres? Migas com carne
de porco? Alberto por certo aprovaria a escolha, mas e os demais? Ricardo
torceria o nariz a este festival de costeletas de porco, toucinho, entrecosto e
banha. Carré de borrego à dordonhesa? Além de trabalhoso, vai nos ingredientes
pâté de fígado trufado. Eu não tolero pâté, que me desculpem os amigos. Tudo,
menos pâté.
Acabei
optando pelo prato nacional de nossa terra: o bacalhau. Não há português que
não aprecie o bacalhau, com iscas ou sem elas! Resolvi, no entanto, fazê-lo à
minha moda, sem sofisticação porém com esmero. Na verdade, já ontem pusera o
peixe de molho, em água fria, com a pele virada para cima. Hoje cedo, ainda
antes do desjejum, retirei-lhe a pele e as espinhas. Depois, envolvi as lascas
num pano e esfreguei-as sobre uma mesa. Deste jeito, o meu bacalhau fica em
fios.
Agora
é hora de descascar as batatas. Meio quilo há de bastar. Vou lavá-las, é claro,
e cortá-las em palha. É para isso que tenho um moinho. A seguir, vou lavar
novamente as batatas em várias águas, escorrê-las e enxugá-las num pano. Há que
deixá-las bem sequitas.
Vou
usar dois – não, três – dentes de alho. É preciso descascá-los e picá-los.
As
cebolas, quatro ou cinco, vou cortá-las em rodelas finíssimas, que assim me
ensinou minha mãe.
A
campainha tocou. Chegaram juntos, vindos do Brasileira. Álvaro com seu
inseparável charuto, Ricardo com o Jornal do Comércio dobrado em quatro no
bolso do paletó e Alberto, de guarda-chuva.
-
Passem, passem. Fiquem à vontade, sirvam-se do que lhes aprouver. O jantar já
vai à mesa.
- O
que teremos hoje? indagou Álvaro.
- É
esperar e ver, é esperar e ver, respondi da cozinha.
Mais
alguns minutos e vou levar o azeite ao lume numa frigideira. Quando estiver
quente, vou juntar-lhe os dentes de alho e assim que o alho começar a alourar,
vou adicionar as batatas, para fritá-las ligeiramente. Com um garfo, vou
mexê-las sem parar para que não fiquem coladas umas às outras.
Tiro
agora as batatas e, na mesma gordura, alouro as cebolas e, em seguida, o
bacalhau, misturando tudo por cinco minutos.
- Cinco minutos mais, grito
eu.
Agora é o momento de introduzir as batatas
novamente na frigideira, mexendo e regando com os cinco ovos que já bati e
temperei com sal e pimenta. Há que mexer sem parar sobre lume médio – eis o
segredo. Assim os ovos ficarão macios – eu espero.
Pronto. Levo o bacalhau à
mesa, polvilhado com salsa picada e enfeitado com azeitonas pretas.
- E o vinho? perguntam
todos, exceto o Alberto.
- Vou buscar, vou buscar.
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