The Globe |
Em
1599 Shakespeare, em sociedade com outros atores, construiu o seu próprio
teatro, o Globe Theatre, com a ajuda,
é claro, da Rainha. Mas o empreendimento não deu muito certo. O teatro pegou
fogo em 29 de junho de 1613, durante uma apresentação de Henry VIII. Embora o teatro estivesse cheio, ninguém se feriu, com
exceção de um senhor cujas calças se incendiaram. O pobre homem se salvou
porque jogaram um galão de cerveja nele. Observem a coincidência. Foi também
num 29 de junho que o Brasil ganhou sua primeira Copa do Mundo na Suécia, em
1958. É claro que isso não tem nada a ver, mas eu não me contive. Desculpe.
Um ano
depois o Globe foi reconstruído e
funcionou até 1642, quando foi fechado por motivos religiosos. Não vou entrar
em detalhes porque a essa altura Shakespeare já tinha morrido. O teatro foi
demolido em 1644. E não se fala mais nisso. Ou se fala: hoje existe uma réplica
tão fiel quanto possível do Globe
original, feita inteiramente de madeira, sem a utilização de pregos, que não
existiam na época, e com telhado de sapê. É a única construção com esse tipo de
telhado permitida em Londres desde o grande incêndio de 1666, que durou quatro
dias, destruiu 13.000 casas, 87 igrejas mas só matou seis pessoas. Como isso
foi possível só Deus sabe.
Em
1597 morreu Hamnet, o filho de Shakespeare. Alguns meses depois ele comprou uma
bruta casa em Stratford, a New House,
na esquina da Chapel Street com a Chapel Lane. Pagou uma pechincha, 60 libras. Era a segunda
maior casa da cidade, mas estava em péssimo estado de conservação. Levou tanto
tempo para reformar que Shakespeare só pôde se mudar de vez em 1610. A mulher
de Shakespeare, apesar de a casa ser de madeira e tijolo, o que era uma
novidade na época, e de ter dez lareiras, não cansava de dizer que aquilo era
um muquifo. Adivinha em quem “A megera domada” foi inspirada... A casa não
existe mais: foi demolida em 1759. Só existe no terreno uma árvore que dizem
que foi plantada pelo próprio Shakespeare. Não foi.
Shakespeare
redigiu seu testamento em 1611, deixando a casa em que morava para a filha
Susanna, a essa época já casada com o Dr. John Hall, um médico influente em
Stratford. Para a outra filha, Judith, ele
deixou 300 libras, e para a esposa, “aquela adder”,
como Shakespeare se referia à mulher, a segunda melhor cama da casa. A
primeira, é óbvio, ficou para a filha mais velha. Para quem não sabe, adder é o nome da única cobra venenosa
da Grã-Bretanha. A viúva chegou a pensar em anular o testamento, mas foi
dissuadida pelo genro, o Dr. Hall. “Se a senhora entrar com uma ação na
justiça, eu juro que ponho veneno na sua comida”, disse o bondoso esculápio,
numa tarde em que ela estava tomando chá com torradas na New House. Prudentemente, ela pôs de volta no pires a xícara que
estava prestes a levar à boca.
Shakespeare
faleceu em 24 de abril de 1616 aos 52 anos de idade. Numa época em que poucos
homens chegavam aos 40, ele devia parecer um ancião. Depois de mais uma noite
de esbórnia em companhia do poeta Ben Jonson (assim mesmo, sem h), ele chegou
em casa, desabou na cama sob o olhar reprovador da esposa e bateu as botas.
Para
aumentar a lenda em torno do Bardo, dizem que ele morreu no dia 23, isto é, no
dia do aniversário dele. Balela. Ele morreu mesmo no dia 24 e foi enterrado no
dia 25 na Igreja da Santíssima Trindade, lá mesmo em Stratford.
Na
Westminster Abbey em Londres, existe uma pequena área chamada Poets’ Corner (o Canto dos Poetas), em
que estão sepultados muitos poetas (é claro), além de dramaturgos e escritores
em geral, tais como Geoffrey Chaucer (considerado o pai da literatura inglesa,
por ter escrito em plena Idade Média as Canterbury
Tales de um jeito que, com muita condescendência, dá para chamar de ‘inglês
moderno’. Pois sim! Tente ler aquilo.), Charles Dickens (autor de David Copperfield e Oliver Twist, entre muitos outros), Rudyard Kipling (criador das
histórias sobre Mowgli e os animais) e tantos outros. Shakespeare, contudo, com
certeza o maior de todos, não está lá. Por quê? Porque em sua tumba ele
determinou que fosse inscrita a seguinte praga:
Bendito
amigo, por Jesus, abstenha-se
de
profanar o pó aqui enterrado.
Bendito
seja o homem que respeite estas pedras
e maldito o que remover
meus ossos.
Em 1623, John Heminges e Henry Condell, dois amigos e sócios
de Shakespeare na companhia de teatro The
King’s Men, publicaram o First Folio,
a primeira edição completa das suas peças e ai começaram as fofocas, as
maledicências, o diz que diz que. Que Shakespeare era isso, que Shakespeare era
aquilo, um inferno. E tudo isso por quê? Vou explicar.
Em primeiro lugar, há mais de 80 variações da grafia do
nome William Shakespeare: Shappere,
Shaxberd, Willm Shakp, Willm Shakespeare, William Shakspeare etc. De uma vez
por todas, é Shakspere, pelo amor de Deus! É assim que ele foi batizado e é
assim que eu vou passar a grafar o seu nome. Quem duvidar é só verificar sua
certidão de nascimento lá na igreja em Stratford.
Em segundo lugar, tem gente que acha que um cara que
nasceu numa família pobre e não fez faculdade não poderia ter escrito aquelas
37 peças de teatro, sem falar nos 154 sonetos. Como alguém, questionam esses
incrédulos, que não esquentou os bancos escolares por mais de cinco ou seis
anos, poderia ter criado mais de 1700 palavras novas, que hoje são de uso
corrente, como por exemplo lonely, champion,
majestic, torture, schoolboy, useful? Ou nomes de pessoas, tais como Olivia, Miranda, Jessica e Cordelia? Como seria possível que alguém,
sem consultar nenhum dicionário, que, aliás, nem existia na época, pudesse
dominar um vocabulário de mais 30.000 palavras, o triplo ou o quádruplo de uma
pessoa medianamente escolarizada? Como alguém, sem ter passado por Oxford ou
Cambridge, poderia estar familiarizado com fatos históricos, acidentes
geográficos, particularidades a respeito das figuras da corte, além de ser um
profundo conhecedor da Bíblia? Entre as pessoas a quem se atribuem as obras de
Shakspere estão Francis Bacon (Chico Toicinho, para os íntimos), Edward De Vere
[17º Conde de Oxford, cujo brasão era a
lion shaking a spear (um leão brandindo uma espada – notaram a sutileza?)],
Christopher Marlowe (dramaturgo, poeta e tradutor, que morreu esfaqueado numa
briga de bar), além de outros menos votados. Puro preconceito. Foi Shakspere
mesmo, e ninguém mais, que escreveu tudo aquilo. E digo mais: ele escreveu mais
duas ou três peças e uns dez sonetos, que infelizmente se perderam no incêndio
do Globe Theatre. Considerando toda a
obra do Bardo, o Google nos informa que ele escreveu 884.647 palavras. O que
isso quer dizer eu não faço a menor ideia.
Em terceiro lugar, a polêmica sobre a verdadeira
aparência de Shakspere. Ninguém sabe exatamente como ele era. Quer dizer,
ninguém, não. Eu sei. O primeiro retrato
do Bardo foi pintado por Richard Burbage, um velho amigo, na primeira década do
século XVII. Muito a contragosto, Shakspere concordou em posar para Burbage,
contanto que ele não pintasse o brinquinho que ele usava na orelha esquerda.
Mas Burbage argumentou que não havia nada demais, que era moda, que ninguém ia
duvidar da sua masculinidade, enfim que era para parar de frescura. E assim foi
feito. O resultado final não agradou o poeta. Já o retrato, digamos, “oficial”
do Bardo apareceu no frontispício do First
Folio em 1623, sete anos depois de sua morte. Foi feito por Martin
Droeshout, que criou a imagem que hoje conhecemos, com base em informações de
amigos do poeta. Ele nunca viu o retrato pintado por Burbage, e na verdade,
Droeshout nem sequer chegou a conhecer o Bardo pessoalmente. Quando Shakspere
morreu ele tinha apenas 15 anos de idade. Portanto, devemos desculpá-lo pelo
péssimo trabalho. Era jovem ainda, inexperiente, e pintou de cabeça. Reparem na
testa de Shakspere: mais parece um ovo com uma peruca em cima. Mas ele omitiu o brinquinho.
Sem brinquinho |
Em quarto lugar, qual a verdadeira origem da fortuna de
Shakespeare? Atribuí-la aos direitos autorais pela venda de sua produção
literária é ignorar o mercado da época. Ninguém ganhava dinheiro escrevendo
livros. Ainda hoje a situação é precária. A noção de best-sellers é relativamente recente. Não, esqueçam as peças e os
sonetos. Era como ator, empresário e sócio dos teatros em que trabalhava que
ele ganhava a cerveja de cada dia.
Em quinto lugar, que tipo de homem era Shakspere? Posso
garantir que o cara era macho mesmo. Para ser bem sucedido naquele meio
teatral, tinha que ser valente. O teatro, como instituição, era muito mal visto
pelas autoridades. Aquilo lá “é um antro de ladrões, prostitutas, vigaristas e
arruaceiros de toda espécie”, chegou a dizer o prefeito de Londres numa
audiência com a Rainha Elizabeth. E era verdade, mas e daí? A rainha gostava e
fim de papo.
Em sexto lugar, a família de Shakspere. Como toda
família, um misto de alegrias e tristezas. Para começar, ele teve sete irmãos,
dos quais só um viveu mais do que ele: Joan, sua irmã mais nova, que morreu com
a espantosa idade – para a época - de 77 anos. É a única parente de Shakspere
que tem descendentes até hoje. Os outros irmãos foram todos vítimas da peste
bubônica. Já sabemos que o filho do poeta, Hamnet, morreu aos 11 anos. Sua
filha mais velha, Susanna, lhe deu uma neta, Elizabeth, que não teve filhos.
Sua outra filha, Judith, casou-se, teve vários filhos, mas nenhum deles
sobreviveu. Quer dizer, hoje não há ninguém que possa honestamente estufar o
peito e dizer “meu tataratataratataratatartataravô Shakespere...”
Em sétimo lugar, há mais de 157 milhões de páginas sobre Shakspere
no Google, mais do que as 132 milhões sobre Deus, ou as 2.7 milhões sobre Elvis
Presley. No meio dessas páginas, a gente encontra coisas do tipo: “Shakspere é
um dramaturgo elizabetano”. Nem tanto. É só ver o estilo dele. Quase todas as
suas peças mais populares foram escritas depois da morte de Elizabeth I em 1603.
Durante o reinado de James I, de 1603 a 1625, Shakspere escreveu, entre outras,
Macbeth, King Lear, Othelo e The Tempest. Portanto, é mais correto
dizer que o Bardo é um poeta meio elizabetano, meio jacobino, termo este
derivado, como todos sabem, de Jacobus, a forma latina de James. Outra inverdade muito frequente diz respeito à religião de
Shakspere. Um tal de Richard Davies, que o conheceu pessoalmente, disse, alguns
anos após a morte do poeta, que ele era católico. Não era. Acreditem, não era. Ele
não ia ser besta de se insurgir contra a religião oficial depois de tudo que os
monarcas anglicanos fizeram por ele.
Last but not least será que Shakespere era gay? Afinal, dizem, quase todos os 154
sonetos que escreveu se dirigem a um homem. Mas caramba! Chico Buarque também
escreveu letras de músicas como se ele, Chico, fosse mulher. Alguém aí duvida
que o homem é espada? Então, o mesmo raciocínio se aplica ao Bardo. Será que
algum energúmeno, ao contemplar o teto da Capela Sistina no Vaticano, vai
exclamar: “E olha que o cara era bicha, ein!” Tchaikovski era gay, certo? Nem
por isso, “O Quebra-Nozes” ou “O Lago dos Cisnes” são menos belos. E o que
dizer de Michelangelo, Oscar Wilde, Garcia Lorca, Pasolini, e tantos outros?
Ein, ein?
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