terça-feira, 19 de abril de 2016

Biografia não autorizada de Shakespeare - Parte 2

The Globe
Em 1599 Shakespeare, em sociedade com outros atores, construiu o seu próprio teatro, o Globe Theatre, com a ajuda, é claro, da Rainha. Mas o empreendimento não deu muito certo. O teatro pegou fogo em 29 de junho de 1613, durante uma apresentação de Henry VIII. Embora o teatro estivesse cheio, ninguém se feriu, com exceção de um senhor cujas calças se incendiaram. O pobre homem se salvou porque jogaram um galão de cerveja nele. Observem a coincidência. Foi também num 29 de junho que o Brasil ganhou sua primeira Copa do Mundo na Suécia, em 1958. É claro que isso não tem nada a ver, mas eu não me contive. Desculpe.

Um ano depois o Globe foi reconstruído e funcionou até 1642, quando foi fechado por motivos religiosos. Não vou entrar em detalhes porque a essa altura Shakespeare já tinha morrido. O teatro foi demolido em 1644. E não se fala mais nisso. Ou se fala: hoje existe uma réplica tão fiel quanto possível do Globe original, feita inteiramente de madeira, sem a utilização de pregos, que não existiam na época, e com telhado de sapê. É a única construção com esse tipo de telhado permitida em Londres desde o grande incêndio de 1666, que durou quatro dias, destruiu 13.000 casas, 87 igrejas mas só matou seis pessoas. Como isso foi possível só Deus sabe.

Em 1597 morreu Hamnet, o filho de Shakespeare. Alguns meses depois ele comprou uma bruta casa em Stratford, a New House, na esquina da Chapel Street com a Chapel Lane.  Pagou uma pechincha, 60 libras. Era a segunda maior casa da cidade, mas estava em péssimo estado de conservação. Levou tanto tempo para reformar que Shakespeare só pôde se mudar de vez em 1610. A mulher de Shakespeare, apesar de a casa ser de madeira e tijolo, o que era uma novidade na época, e de ter dez lareiras, não cansava de dizer que aquilo era um muquifo. Adivinha em quem “A megera domada” foi inspirada... A casa não existe mais: foi demolida em 1759. Só existe no terreno uma árvore que dizem que foi plantada pelo próprio Shakespeare. Não foi.

Shakespeare redigiu seu testamento em 1611, deixando a casa em que morava para a filha Susanna, a essa época já casada com o Dr. John Hall, um médico influente em Stratford.  Para a outra filha, Judith, ele deixou 300 libras, e para a esposa, “aquela adder”, como Shakespeare se referia à mulher, a segunda melhor cama da casa. A primeira, é óbvio, ficou para a filha mais velha. Para quem não sabe, adder é o nome da única cobra venenosa da Grã-Bretanha. A viúva chegou a pensar em anular o testamento, mas foi dissuadida pelo genro, o Dr. Hall. “Se a senhora entrar com uma ação na justiça, eu juro que ponho veneno na sua comida”, disse o bondoso esculápio, numa tarde em que ela estava tomando chá com torradas na New House. Prudentemente, ela pôs de volta no pires a xícara que estava prestes a levar à boca.

Shakespeare faleceu em 24 de abril de 1616 aos 52 anos de idade. Numa época em que poucos homens chegavam aos 40, ele devia parecer um ancião. Depois de mais uma noite de esbórnia em companhia do poeta Ben Jonson (assim mesmo, sem h), ele chegou em casa, desabou na cama sob o olhar reprovador da esposa e bateu as botas.


Para aumentar a lenda em torno do Bardo, dizem que ele morreu no dia 23, isto é, no dia do aniversário dele. Balela. Ele morreu mesmo no dia 24 e foi enterrado no dia 25 na Igreja da Santíssima Trindade, lá mesmo em Stratford.  
Na Westminster Abbey em Londres, existe uma pequena área chamada Poets’ Corner (o Canto dos Poetas), em que estão sepultados muitos poetas (é claro), além de dramaturgos e escritores em geral, tais como Geoffrey Chaucer (considerado o pai da literatura inglesa, por ter escrito em plena Idade Média as Canterbury Tales de um jeito que, com muita condescendência, dá para chamar de ‘inglês moderno’. Pois sim! Tente ler aquilo.), Charles Dickens (autor de David Copperfield e Oliver Twist, entre muitos outros), Rudyard Kipling (criador das histórias sobre Mowgli e os animais) e tantos outros. Shakespeare, contudo, com certeza o maior de todos, não está lá. Por quê? Porque em sua tumba ele determinou que fosse inscrita a seguinte praga:

Bendito amigo, por Jesus, abstenha-se
de profanar o pó aqui enterrado.
Bendito seja o homem que respeite estas pedras
e maldito o que remover meus ossos.

            Em 1623, John Heminges e Henry Condell, dois amigos e sócios de Shakespeare na companhia de teatro The King’s Men, publicaram o First Folio, a primeira edição completa das suas peças e ai começaram as fofocas, as maledicências, o diz que diz que. Que Shakespeare era isso, que Shakespeare era aquilo, um inferno. E tudo isso por quê? Vou explicar.

            Em primeiro lugar, há mais de 80 variações da grafia do nome William  Shakespeare: Shappere, Shaxberd, Willm Shakp, Willm Shakespeare, William Shakspeare etc. De uma vez por todas, é Shakspere, pelo amor de Deus! É assim que ele foi batizado e é assim que eu vou passar a grafar o seu nome. Quem duvidar é só verificar sua certidão de nascimento lá na igreja em Stratford.

            Em segundo lugar, tem gente que acha que um cara que nasceu numa família pobre e não fez faculdade não poderia ter escrito aquelas 37 peças de teatro, sem falar nos 154 sonetos. Como alguém, questionam esses incrédulos, que não esquentou os bancos escolares por mais de cinco ou seis anos, poderia ter criado mais de 1700 palavras novas, que hoje são de uso corrente, como por exemplo lonely, champion, majestic, torture, schoolboy, useful? Ou nomes de pessoas, tais como Olivia, Miranda, Jessica e Cordelia? Como seria possível que alguém, sem consultar nenhum dicionário, que, aliás, nem existia na época, pudesse dominar um vocabulário de mais 30.000 palavras, o triplo ou o quádruplo de uma pessoa medianamente escolarizada? Como alguém, sem ter passado por Oxford ou Cambridge, poderia estar familiarizado com fatos históricos, acidentes geográficos, particularidades a respeito das figuras da corte, além de ser um profundo conhecedor da Bíblia? Entre as pessoas a quem se atribuem as obras de Shakspere estão Francis Bacon (Chico Toicinho, para os íntimos), Edward De Vere [17º Conde de Oxford, cujo brasão era a lion shaking a spear (um leão brandindo uma espada – notaram a sutileza?)], Christopher Marlowe (dramaturgo, poeta e tradutor, que morreu esfaqueado numa briga de bar), além de outros menos votados. Puro preconceito. Foi Shakspere mesmo, e ninguém mais, que escreveu tudo aquilo. E digo mais: ele escreveu mais duas ou três peças e uns dez sonetos, que infelizmente se perderam no incêndio do Globe Theatre. Considerando toda a obra do Bardo, o Google nos informa que ele escreveu 884.647 palavras. O que isso quer dizer eu não faço a menor ideia.

            Em terceiro lugar, a polêmica sobre a verdadeira aparência de Shakspere. Ninguém sabe exatamente como ele era. Quer dizer, ninguém, não. Eu sei.  O primeiro retrato do Bardo foi pintado por Richard Burbage, um velho amigo, na primeira década do século XVII. Muito a contragosto, Shakspere concordou em posar para Burbage, contanto que ele não pintasse o brinquinho que ele usava na orelha esquerda. Mas Burbage argumentou que não havia nada demais, que era moda, que ninguém ia duvidar da sua masculinidade, enfim que era para parar de frescura. E assim foi feito. O resultado final não agradou o poeta. Já o retrato, digamos, “oficial” do Bardo apareceu no frontispício do First Folio em 1623, sete anos depois de sua morte. Foi feito por Martin Droeshout, que criou a imagem que hoje conhecemos, com base em informações de amigos do poeta. Ele nunca viu o retrato pintado por Burbage, e na verdade, Droeshout nem sequer chegou a conhecer o Bardo pessoalmente. Quando Shakspere morreu ele tinha apenas 15 anos de idade. Portanto, devemos desculpá-lo pelo péssimo trabalho. Era jovem ainda, inexperiente, e pintou de cabeça. Reparem na testa de Shakspere: mais parece um ovo com uma peruca em cima.  Mas ele omitiu o brinquinho.
Sem brinquinho

            Em quarto lugar, qual a verdadeira origem da fortuna de Shakespeare? Atribuí-la aos direitos autorais pela venda de sua produção literária é ignorar o mercado da época. Ninguém ganhava dinheiro escrevendo livros. Ainda hoje a situação é precária. A noção de best-sellers é relativamente recente. Não, esqueçam as peças e os sonetos. Era como ator, empresário e sócio dos teatros em que trabalhava que ele ganhava a cerveja de cada dia.
            Em quinto lugar, que tipo de homem era Shakspere? Posso garantir que o cara era macho mesmo. Para ser bem sucedido naquele meio teatral, tinha que ser valente. O teatro, como instituição, era muito mal visto pelas autoridades. Aquilo lá “é um antro de ladrões, prostitutas, vigaristas e arruaceiros de toda espécie”, chegou a dizer o prefeito de Londres numa audiência com a Rainha Elizabeth. E era verdade, mas e daí? A rainha gostava e fim de papo.

            Em sexto lugar, a família de Shakspere. Como toda família, um misto de alegrias e tristezas. Para começar, ele teve sete irmãos, dos quais só um viveu mais do que ele: Joan, sua irmã mais nova, que morreu com a espantosa idade – para a época - de 77 anos. É a única parente de Shakspere que tem descendentes até hoje. Os outros irmãos foram todos vítimas da peste bubônica. Já sabemos que o filho do poeta, Hamnet, morreu aos 11 anos. Sua filha mais velha, Susanna, lhe deu uma neta, Elizabeth, que não teve filhos. Sua outra filha, Judith, casou-se, teve vários filhos, mas nenhum deles sobreviveu. Quer dizer, hoje não há ninguém que possa honestamente estufar o peito e dizer “meu tataratataratataratatartataravô Shakespere...”

            Em sétimo lugar, há mais de 157 milhões de páginas sobre Shakspere no Google, mais do que as 132 milhões sobre Deus, ou as 2.7 milhões sobre Elvis Presley. No meio dessas páginas, a gente encontra coisas do tipo: “Shakspere é um dramaturgo elizabetano”. Nem tanto. É só ver o estilo dele. Quase todas as suas peças mais populares foram escritas depois da morte de Elizabeth I em 1603. Durante o reinado de James I, de 1603 a 1625, Shakspere escreveu, entre outras, Macbeth, King Lear, Othelo e The Tempest. Portanto, é mais correto dizer que o Bardo é um poeta meio elizabetano, meio jacobino, termo este derivado, como todos sabem, de Jacobus, a forma latina de James. Outra inverdade muito frequente diz respeito à religião de Shakspere. Um tal de Richard Davies, que o conheceu pessoalmente, disse, alguns anos após a morte do poeta, que ele era católico. Não era. Acreditem, não era. Ele não ia ser besta de se insurgir contra a religião oficial depois de tudo que os monarcas anglicanos fizeram por ele.


            Last but not least  será que Shakespere era gay? Afinal, dizem, quase todos os 154 sonetos que escreveu se dirigem a um homem. Mas caramba! Chico Buarque também escreveu letras de músicas como se ele, Chico, fosse mulher. Alguém aí duvida que o homem é espada? Então, o mesmo raciocínio se aplica ao Bardo. Será que algum energúmeno, ao contemplar o teto da Capela Sistina no Vaticano, vai exclamar: “E olha que o cara era bicha, ein!” Tchaikovski era gay, certo? Nem por isso, “O Quebra-Nozes” ou “O Lago dos Cisnes” são menos belos. E o que dizer de Michelangelo, Oscar Wilde, Garcia Lorca, Pasolini, e tantos outros? Ein, ein? 

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