segunda-feira, 18 de abril de 2016

Biografia não autorizada de Shakespeare - Parte 1


William Shakespeare é, sem dúvida, o dramaturgo mais famoso do mundo. Suas tragédias e comédias vêm sendo encenadas nos quatro cantos da Terra há mais de 400 anos. Não se passa um único dia sem que várias de suas peças sejam produzidas em algum lugar do planeta.

Shakespeare viveu na época do Renascimento, em que as artes, a cultura e as ciências floresceram. Em toda a Europa Ocidental, fervilhavam novas ideias sobre Deus, a natureza do homem e o seu papel no universo, graças à tradução dos clássicos latinos e gregos, à invenção da prensa de Gutenberg, às descobertas de novos mundos, como a América e o Brasil, e ao telescópio de Galileu. O limitado mundo europeu ia se expandindo rapidamente e assim a Inglaterra dos séculos XV e XVI pôde testemunhar um tempo de grandes realizações literárias e teatrais, estimuladas e patrocinadas pela Rainha Elizabeth I e seu primo e sucessor James I. Shakespeare não poderia ter nascido em ambiente mais propício.

No entanto, a despeito de toda sua fama, muito pouco se sabe de sua vida pessoal, e por isso eu decidi preencher as muitas lacunas que cercam o misterioso Bardo, como ele é de vez em quando chamado.

William Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon, uma cidadezinha às margens do rio Avon, como o próprio nome indica. Na Inglaterra eles têm essa mania de, já no nome, dar uma dica da geografia do lugar, como por exemplo, Twerton-on-Avon, que também fica perto do mesmo rio, ou Weston-super-Mare, situada, é óbvio, à beira mar. Bom, Stratford está encravada no coração da Inglaterra, a cerca de 130 km de Londres. Se hoje a população é de menos de 30.000 habitantes, imagine no século XVI!

Shakespeare foi batizado na igrejinha local, a Holy Trinity Church em abril de 1564. Mas em que dia ele nasceu? Uns dizem 23, outros 24, 25. Eu digo 23.

O pai de Shakespeare, John Shakespeare, comeu o pão que o diabo amassou até se tornar alguém em Stratford. Como era um sujeito de maus bofes, vira e mexe se metia em encrenca e, de pavio muito curto, não parava em emprego nenhum. Foi açougueiro, pintor de parede, ferreiro e marceneiro. Atribui-se a ele a invenção da mesa de jantar com tampo reversível. Terminada a refeição, era só virar o tampo. Não era preciso limpar a mesa. Os restos de comida caíam no chão e os cães da casa se encarregavam da limpeza.  Prático, não? Talher não havia. Toalha de mesa, menos ainda. Comia-se com a mão.

Durante um tempo Mr. Shakespeare foi negociante de couro e lã. Depois passou a fabricar luvas, com o couro e a lã que roubava dos fregueses, até que conseguiu o emprego dos seus sonhos, o de ‘fiscal de malte’, emprego este dos mais cobiçados, pois consistia em experimentar todo tipo de cerveja e uísque produzido na região. Não durou mais que dois anos no serviço por estar sempre de fogo.

Algum tempo mais tarde, John deu o chamado golpe do baú: casou-se com Mary Arden, filha de um rico fazendeiro, Edward Arden, para quem seu pai, avô de William, havia trabalhado. Dessa maneira, John Shakespeare tornou-se um agiota, emprestando dinheiro a juros para lá de extorsivos. O homem se tornou tão importante que chegou a ser eleito prefeito de Stratford, apesar de analfabeto. O cara assinava o nome com um x!

Graças a inúmeros trambiques, acabou provocando a ira de vários de seus eleitores, os quais o expulsaram da prefeitura e lhe deram o calote, o que o levou à falência. O que pode ter contribuído para a desgraça de John foi o fato de que o sogro era um católico fervoroso num tempo em que a rainha Elizabeth I era a chefe da Igreja Anglicana. O homem era desbocado, andou falando mal de um tal de Robert Dudley, um sujeito muito amigo da Rainha Virgem, se é que vocês me entendem, e não deu outra: ele acabou enforcado e esquartejado na Torre de Londres, onde hoje se expõem as Joias da Coroa, a mais preciosa das quais...Esquece.    

Shakespeare frequentou a única escola que havia na cidade e teve noções básicas do que era chamado popular e jocosamente de the three rs (os três Rs): reading, (w)riting and (a)rithmetic (ler, escrever e fazer contas), além de um pouco de latim, tendo inclusive tatuado a frase Amor amore compensatur (Amor com amor se paga) no traseiro.

Em 1582, Shakespeare, com apenas 18 anos, fez uma tremenda besteira. Quando se preparava para prestar o vestibular em Oxford, que fica pertinho de Stratford – duas horas de trem, que, claro, ainda não tinha sido inventado - ele começou a namorar uma moça chamada Anne Hathaway. Eu digo moça por educação. Afinal, ela já estava com 26 anos, ou seja, era oito anos mais velha que ele. Naquele tempo, já era considerada uma respeitável coroa. E não deu outra: a mulher engravidou. Foi um escândalo. Shakespeare não teve outro jeito senão casar com Anne às pressas. Foi no dia 28 de novembro. Na época, era costume anunciar um casamento na igreja em três domingos seguidos. O deles só foi anunciado uma única vez. O pároco levou uma grana para abrir tão incomum exceção. Em maio do ano seguinte, Anne H. Shakespeare deu à luz a filha Susanna.

William e Anne nunca se deram muito bem. Prova disso é que em seu testamento, Shakespeare, de pura sacanagem, deixou para a esposa, “sua segunda melhor cama”. Cabe aqui uma explicação: a melhor cama costumava ser a cama do que hoje seria chamado de quarto de hóspedes. A segunda melhor cama era a cama do casal. Entenderam, né?

A verdade é que viviam brigando, porque Anne, que era uma ignorante, implicava com a mania do marido de fazer poesia e caçar veados (digo isso sem nenhuma malícia). Volta e meia Shakespeare saía de casa e passava dias e dias longe da família. Mas depois voltava, quase sempre bêbado. De vez em quando, ele arranjava alguns alunos particulares para dar aula de latim. Os alunos não duravam muito. As aulas eram muito chatas. Como o seu latim era limitadíssimo, a única coisa que os seus poucos alunos faziam era decorar a primeira e a segunda declinação: rosa-rosae-rosae-rosam-rosa-rosa; lupus-lupi-lupo-lupum-lupe-lupo.  A escola, que ainda existe, conserva até hoje uma carteira em que um aluno entalhou com canivete a frase Shakspere filius eguae (Shakespeare filho de uma égua).  

Não obstante, embora o ambiente doméstico fosse frequentemente abalado pelos arranca-rabos entre os dois, um ano e meio depois do casamento, em 2 de fevereiro de 1585, os Shakespeares tiveram gêmeos, Hamnet e Judith.  O pobre Hamnet morreu de peste bubônica aos 11 anos de idade. “A Tragédia de Hamlet, o Príncipe da Dinamarca” era para se chamar Hamnet em homenagem ao filho, mas Shakespeare tinha uma letra horrível e acabou ficando Hamlet mesmo.

Até hoje não se sabia o que Shakespeare fez entre os anos de 1585, quando os gêmeos foram batizados em Stratford, e 1592, quando em Londres um tal de Robert Greene, ator e crítico de arte, faz uma citação de seu nome. Mas eu sei.  Esses sete anos, até recentemente, eram conhecidos por the lost years (os anos perdidos), por não haver nenhum registro de suas atividades. Mas é claro que não podia haver nada durante esse tempo: o homem, além de frequentar todos os pubs de sua cidade natal – e havia vários! – adorava caçar, como já foi ressaltado acima. Ele e seus amigos ficavam às vezes semanas caçando veados, coelhos e patos. Até que um dia ele, que na ocasião estava mais bêbado do que o habitual, entrou nas terras de um sujeito chamado Thomas Lucy, que, apesar desse nome suave, era bravo feito um leão. Ao ser surpreendido abatendo um belo veado (sempre – insisto – no bom sentido), Shakespeare não teve outra alternativa senão pegar a mulher e os filhos e fugir em desabalada carreira para Londres. Durante séculos especulou-se que ele chegou a dar aula numa escolinha em Lancashire, mas isso é mentira. A verdade é que ele não fez outra coisa senão encher a cara, escrever poemas – muito ruins, por sinal, tanto assim que ele os queimou todos – e caçar...bem, vocês já sabem o quê.

Ao chegar em Londres, porém, a coisa mudou. Primeiro, porque praticamente não havia o que caçar na capital e, segundo, porque o custo de vida de Londres sempre foi altíssimo. Ainda hoje é assim. Um pint de cerveja custa quase...mas isso é outra história. O fato é que Anne ameaçou dar uma surra no marido se ele não arranjasse um emprego, qualquer emprego, desde que as crianças não morressem de fome. Shakespeare, que não sabia fazer nada a não ser escrever versos e abater animais em caçadas, tratou de se aproximar das companhias de teatro. Começou como faxineiro e foi aos poucos subindo no que mais tarde se convencionou chamar de show business. Foi contrarregra, maquinista, “ponto” (aquele camarada que, da coxia, assopra as falas para os atores no palco), ator coadjuvante e, finalmente, autor de textos.

O teatro daquela época era barra pesada, tão barra pesada que mulher não podia ser atriz. Os papéis femininos eram desempenhados por rapazes imberbes, o que provocava na plateia reações das mais indignadas. Além disso, a plateia não ficava sentada, mesmo porque não havia assentos, só os mais ricos se sentavam nas galerias superiores, correspondentes aos camarotes dos bacanas de nossos tempos. O povão levava comida e bebida para dentro do recinto. A galera aplaudia, vaiava e às vezes atirava tomates, cenouras e legumes variados nos atores. Uma vez, um ator ficou doente e Shakespeare fez o papel do Fantasma em Hamlet. Um tomate quase lhe acertou a testa. Ele ficou furioso e saiu do palco. O pessoal vaiou tanto que ele voltou e terminou a cena. “Cambada de ignorantes”, ele murmurou entredentes.

Mesmo assim, ao ler a crítica que Robert Greene lhe fizera, Shakespeare limitou-se a dizer: “Eles vão ter que me engolir”. Para vocês terem uma ideia da dor de cotovelo do crítico, vejam o que ele escreveu sobre Shakespeare: “um corvo carreirista, enfeitado com nossa plumagem, que, com seu coração de tigre envolto numa pele de ator, se acha capaz de arrasar com seus versos brancos...” E por ai vai. Eta cara invejoso! Como vingança, Shakespeare, na peça “O mercador de Veneza”, inventou a expressão green-eyed monster (o monstro de olhos verdes) como metáfora para o ciúme, fazendo alusão ao sobrenome do infeliz Bob Greene.

A coisa voltou a ficar preta em 1593, embora a essa altura ele já tivesse publicado Venus e Adonis e no ano seguinte Lucrécia. Acontece que uma epidemia de peste bubônica fez com que todos os teatros fossem fechados, para que a doença não se alastrasse ainda mais rapidamente.  No fim de 1594, os teatros foram novamente abertos.

Para azar de seus detratores, Shakespeare teve uma ascensão meteórica. Naquele mesmo ano, 50 anos após a fundação da cidade de São Paulo (perdão, estou fugindo do assunto outra vez...), ele entrou para os Lord Chamberlain’s Men, uma companhia de teatro que passou a chamar-se The King’s Men depois que James I subiu ao trono em 1603, como sucessor de Elizabeth I, a Rainha Virgem, que também era vidrada em teatro. Agora, cá entre nós, Rainha Virgem? Rainha Virgem uma ova! Mas isso é uma outra história. De qualquer forma, o homem contava com o respaldo da corte. Tanto a rainha como, depois, o Rei davam o maior apoio à companhia, prestigiando as estreias das peças com sua real presença e cacifando várias montagens.


A sra. Shakespeare agora não tinha do que se queixar. O marido estava ganhando os tubos, era paparicado pela imprensa, suas peças eram extremamente populares, sendo inclusive vendidas na porta do teatro para as poucas pessoas que sabiam ler. Isso não dava muito dinheiro – 5 pence, uma merreca - mas causava furor na sociedade do tempo. Nunca antes na história daquele país um dramaturgo havia transformado seus textos em literatura popular.

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