William
Shakespeare é, sem dúvida, o dramaturgo mais famoso do mundo. Suas tragédias e
comédias vêm sendo encenadas nos quatro cantos da Terra há mais de 400 anos.
Não se passa um único dia sem que várias de suas peças sejam produzidas em
algum lugar do planeta.
Shakespeare
viveu na época do Renascimento, em que as artes, a cultura e as ciências
floresceram. Em toda a Europa Ocidental, fervilhavam novas ideias sobre Deus, a
natureza do homem e o seu papel no universo, graças à tradução dos clássicos
latinos e gregos, à invenção da prensa de Gutenberg, às descobertas de novos
mundos, como a América e o Brasil, e ao telescópio de Galileu. O limitado mundo
europeu ia se expandindo rapidamente e assim a Inglaterra dos séculos XV e XVI pôde
testemunhar um tempo de grandes realizações literárias e teatrais, estimuladas
e patrocinadas pela Rainha Elizabeth I e seu primo e sucessor James I.
Shakespeare não poderia ter nascido em ambiente mais propício.
No
entanto, a despeito de toda sua fama, muito pouco se sabe de sua vida pessoal,
e por isso eu decidi preencher as muitas lacunas que cercam o misterioso Bardo,
como ele é de vez em quando chamado.
William
Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon, uma cidadezinha às margens do rio
Avon, como o próprio nome indica. Na Inglaterra eles têm essa mania de, já no
nome, dar uma dica da geografia do lugar, como por exemplo, Twerton-on-Avon,
que também fica perto do mesmo rio, ou Weston-super-Mare, situada, é óbvio, à
beira mar. Bom, Stratford está encravada no coração da Inglaterra, a cerca de
130 km de Londres. Se hoje a população é de menos de 30.000 habitantes, imagine
no século XVI!
Shakespeare
foi batizado na igrejinha local, a Holy
Trinity Church em abril de 1564. Mas em que
dia ele nasceu? Uns dizem 23, outros 24, 25. Eu digo 23.
O pai
de Shakespeare, John Shakespeare, comeu o pão que o diabo amassou até se tornar
alguém em Stratford. Como era um sujeito de maus bofes, vira e mexe se metia em encrenca e, de pavio muito
curto, não parava em emprego nenhum. Foi açougueiro, pintor de parede,
ferreiro e marceneiro. Atribui-se a ele a invenção da mesa de jantar com tampo
reversível. Terminada a refeição, era só virar o tampo. Não era preciso limpar
a mesa. Os restos de comida caíam no chão e os cães da casa se encarregavam da
limpeza. Prático, não? Talher não havia.
Toalha de mesa, menos ainda. Comia-se com a mão.
Durante
um tempo Mr. Shakespeare foi negociante de couro e lã. Depois passou a fabricar
luvas, com o couro e a lã que roubava dos fregueses, até que conseguiu o emprego
dos seus sonhos, o de ‘fiscal de malte’, emprego este dos mais cobiçados, pois consistia
em experimentar todo tipo de cerveja e uísque produzido na região. Não durou
mais que dois anos no serviço por estar sempre de fogo.
Algum
tempo mais tarde, John deu o chamado golpe do baú: casou-se com Mary Arden,
filha de um rico fazendeiro, Edward Arden, para quem seu pai, avô de William,
havia trabalhado. Dessa maneira, John Shakespeare tornou-se um agiota,
emprestando dinheiro a juros para lá de extorsivos. O homem se tornou tão
importante que chegou a ser eleito prefeito de Stratford, apesar de analfabeto.
O cara assinava o nome com um x!
Graças
a inúmeros trambiques, acabou provocando a ira de vários de seus eleitores, os
quais o expulsaram da prefeitura e lhe deram o calote, o que o levou à
falência. O que pode ter contribuído para a desgraça de John foi o fato de que
o sogro era um católico fervoroso num tempo em que a rainha Elizabeth I era a
chefe da Igreja Anglicana. O homem era desbocado, andou falando mal de um tal
de Robert Dudley, um sujeito muito amigo da Rainha Virgem, se é que vocês me
entendem, e não deu outra: ele acabou enforcado e esquartejado na Torre de
Londres, onde hoje se expõem as Joias da Coroa, a mais preciosa das
quais...Esquece.
Shakespeare
frequentou a única escola que havia na cidade e teve noções básicas do que era
chamado popular e jocosamente de the
three rs (os três Rs): reading, (w)riting and (a)rithmetic (ler, escrever e fazer contas), além de um
pouco de latim, tendo inclusive tatuado a frase Amor amore compensatur (Amor com amor se paga) no traseiro.
Em
1582, Shakespeare, com apenas 18 anos, fez uma tremenda besteira. Quando se
preparava para prestar o vestibular em Oxford, que fica pertinho de Stratford –
duas horas de trem, que, claro, ainda não tinha sido inventado - ele começou a
namorar uma moça chamada Anne Hathaway. Eu digo moça por educação. Afinal, ela
já estava com 26 anos, ou seja, era oito anos mais velha que ele. Naquele
tempo, já era considerada uma respeitável coroa. E não deu outra: a mulher
engravidou. Foi um escândalo. Shakespeare não teve outro jeito senão casar com
Anne às pressas. Foi no dia 28 de novembro. Na época, era costume anunciar um
casamento na igreja em três domingos seguidos. O deles só foi anunciado uma
única vez. O pároco levou uma grana para abrir tão incomum exceção. Em maio do
ano seguinte, Anne H. Shakespeare deu à luz a filha Susanna.
William
e Anne nunca se deram muito bem. Prova disso é que em seu testamento, Shakespeare,
de pura sacanagem, deixou para a esposa, “sua segunda melhor cama”. Cabe aqui
uma explicação: a melhor cama costumava ser a cama do que hoje seria chamado de
quarto de hóspedes. A segunda melhor cama era a cama do casal. Entenderam, né?
A
verdade é que viviam brigando, porque Anne, que era uma ignorante, implicava
com a mania do marido de fazer poesia e caçar veados (digo isso sem nenhuma
malícia). Volta e meia Shakespeare saía de casa e passava dias e dias longe da
família. Mas depois voltava, quase sempre bêbado. De vez em quando, ele
arranjava alguns alunos particulares para dar aula de latim. Os alunos não
duravam muito. As aulas eram muito chatas. Como o seu latim era limitadíssimo,
a única coisa que os seus poucos alunos faziam era decorar a primeira e a segunda
declinação: rosa-rosae-rosae-rosam-rosa-rosa; lupus-lupi-lupo-lupum-lupe-lupo. A escola, que ainda existe, conserva até hoje
uma carteira em que um aluno entalhou com canivete a frase Shakspere filius eguae (Shakespeare filho de uma égua).
Não
obstante, embora o ambiente doméstico fosse frequentemente abalado pelos
arranca-rabos entre os dois, um ano e meio depois do casamento, em 2 de
fevereiro de 1585, os Shakespeares tiveram gêmeos, Hamnet e Judith. O pobre Hamnet morreu de peste bubônica aos
11 anos de idade. “A Tragédia de Hamlet, o Príncipe da Dinamarca” era para se
chamar Hamnet em homenagem ao filho, mas Shakespeare tinha uma letra horrível e
acabou ficando Hamlet mesmo.
Até
hoje não se sabia o que Shakespeare fez entre os anos de 1585, quando os gêmeos
foram batizados em Stratford, e 1592, quando em Londres um tal de Robert Greene,
ator e crítico de arte, faz uma citação de seu nome. Mas eu sei. Esses sete anos, até recentemente, eram
conhecidos por the lost years (os
anos perdidos), por não haver nenhum registro de suas atividades. Mas é claro
que não podia haver nada durante esse tempo: o homem, além de frequentar todos
os pubs de sua cidade natal – e havia
vários! – adorava caçar, como já foi ressaltado acima. Ele e seus amigos
ficavam às vezes semanas caçando veados, coelhos e patos. Até que um dia ele,
que na ocasião estava mais bêbado do que o habitual, entrou nas terras de um
sujeito chamado Thomas Lucy, que, apesar desse nome suave, era bravo feito um
leão. Ao ser surpreendido abatendo um belo veado (sempre – insisto – no bom
sentido), Shakespeare não teve outra alternativa senão pegar a mulher e os
filhos e fugir em desabalada carreira para Londres. Durante séculos
especulou-se que ele chegou a dar aula numa escolinha em Lancashire, mas isso é
mentira. A verdade é que ele não fez outra coisa senão encher a cara, escrever
poemas – muito ruins, por sinal, tanto assim que ele os queimou todos – e
caçar...bem, vocês já sabem o quê.
Ao
chegar em Londres, porém, a coisa mudou. Primeiro, porque praticamente não
havia o que caçar na capital e, segundo, porque o custo de vida de Londres
sempre foi altíssimo. Ainda hoje é assim. Um pint de cerveja custa quase...mas isso é outra história. O fato é
que Anne ameaçou dar uma surra no marido se ele não arranjasse um emprego,
qualquer emprego, desde que as crianças não morressem de fome. Shakespeare, que
não sabia fazer nada a não ser escrever versos e abater animais em caçadas,
tratou de se aproximar das companhias de teatro. Começou como faxineiro e foi
aos poucos subindo no que mais tarde se convencionou chamar de show business. Foi contrarregra,
maquinista, “ponto” (aquele camarada que, da coxia, assopra as falas para os
atores no palco), ator coadjuvante e, finalmente, autor de textos.
O
teatro daquela época era barra pesada, tão barra pesada que mulher não podia
ser atriz. Os papéis femininos eram desempenhados por rapazes imberbes, o que
provocava na plateia reações das mais indignadas. Além disso, a plateia não
ficava sentada, mesmo porque não havia assentos, só os mais ricos se sentavam
nas galerias superiores, correspondentes aos camarotes dos bacanas de nossos
tempos. O povão levava comida e bebida para dentro do recinto. A galera aplaudia,
vaiava e às vezes atirava tomates, cenouras e legumes variados nos atores. Uma
vez, um ator ficou doente e Shakespeare fez o papel do Fantasma em Hamlet. Um
tomate quase lhe acertou a testa. Ele ficou furioso e saiu do palco. O pessoal
vaiou tanto que ele voltou e terminou a cena. “Cambada de ignorantes”, ele
murmurou entredentes.
Mesmo
assim, ao ler a crítica que Robert Greene lhe fizera, Shakespeare limitou-se a
dizer: “Eles vão ter que me engolir”. Para vocês terem uma ideia da dor de
cotovelo do crítico, vejam o que ele escreveu sobre Shakespeare: “um corvo
carreirista, enfeitado com nossa plumagem, que, com seu coração de tigre
envolto numa pele de ator, se acha capaz de arrasar com seus versos brancos...”
E por ai vai. Eta cara invejoso! Como vingança, Shakespeare, na peça “O
mercador de Veneza”, inventou a expressão green-eyed
monster (o monstro de olhos verdes) como metáfora para o ciúme, fazendo
alusão ao sobrenome do infeliz Bob Greene.
A
coisa voltou a ficar preta em 1593, embora a essa altura ele já tivesse
publicado Venus e Adonis e no ano
seguinte Lucrécia. Acontece que uma
epidemia de peste bubônica fez com que todos os teatros fossem fechados, para
que a doença não se alastrasse ainda mais rapidamente. No fim de 1594, os teatros foram novamente
abertos.
Para
azar de seus detratores, Shakespeare teve uma ascensão meteórica. Naquele mesmo
ano, 50 anos após a fundação da cidade de São Paulo (perdão, estou fugindo do
assunto outra vez...), ele entrou para os Lord
Chamberlain’s Men, uma companhia de teatro que passou a chamar-se The King’s Men depois que James I subiu
ao trono em 1603, como sucessor de Elizabeth I, a Rainha Virgem, que também era
vidrada em teatro. Agora, cá entre nós, Rainha Virgem? Rainha Virgem uma ova!
Mas isso é uma outra história. De qualquer forma, o homem contava com o
respaldo da corte. Tanto a rainha como, depois, o Rei davam o maior apoio à
companhia, prestigiando as estreias das peças com sua real presença e cacifando
várias montagens.
A sra.
Shakespeare agora não tinha do que se queixar. O marido estava ganhando os
tubos, era paparicado pela imprensa, suas peças eram extremamente populares,
sendo inclusive vendidas na porta do teatro para as poucas pessoas que sabiam
ler. Isso não dava muito dinheiro – 5 pence,
uma merreca - mas causava furor na sociedade do tempo. Nunca antes na história
daquele país um dramaturgo havia transformado seus textos em literatura
popular.
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