11. DE COMO O CAMACHO
ME PAGOU
No 5º ano da São
Francisco, eu já dava aula, aliás um monte de aula. Por isso, já estava
ganhando um dinheirinho que me permitiu, inclusive, comprar um carro. Um Fusca
65, cujo motor fundiu numa viagem a Caraguatatuba no carnaval de 68.
O Camacho era meu
colega de turma. Chegamos a dar pindura algumas vezes. Mas o Camacho era um
intelectual e um durango, o que, convenhamos, são duas qualidades que costumam
andar juntas. Os nossos pinduras não eram em restaurantes, eram em livrarias.
Entrávamos, mostrávamos nossas carteirinhas da Faculdade e anunciávamos nosso
desejo.
- Podem escolher um
livro cada daquela prateleira lá, dizia o gerente.
- Desculpe,
argumentava com educação e voz baixa o Camacho, mas o senhor não entendeu. Nós
somos estudantes, no ano que vem seremos advogados e precisamos de livros bons,
úteis, livros que...
- Mas isso é o fim
da picada!
- Veja bem, encare
esta doação como um investimento. No ano que vem nós, já formados, não
poderemos mais dar pindura. Ou seja, nós seremos seus clientes – e clientes
fiéis, entende?
Conseguimos bons
livros, eu e o Camacho.
Ele trabalhava num
escritório de advocacia. Ganhava pouco. E conversávamos sobre isso.
- E se a gente, nós
dois, com a cara e com a coragem, montarmos um escritório?
- Camacho, não dá. Eu
já estou dando aula, estou ganhando bem, eu não vou largar meus empregos (eram
duas ou três escolas, tudo ao mesmo tempo) para me meter, desculpe, numa
aventura. Já pensou? Alugar uma ou duas salas, mobiliar, comprar uma linha
telefônica, contratar uma secretária...e depois ficar esperando que apareça
algum cliente. Quanto tempo a gente ficaria pastando até conseguir fazer um
nome? Não, não. Não conte comigo. Você vai ter que se virar sozinho.
Muito bem. O ano
acabou, a gente se formou, cada um seguiu sua vida.
Seis, sete ou dez
anos mais tarde, num domingo de manhã, o interfone tocou.
- É o dr. Camacho.
- Quem?
- Dr. Camacho.
- Mande subir.
Segundos depois, a
campainha toca, eu abro a porta e eis que o velho Camacho, agora de bigode, hoje
um dos maiores advogados comercialistas de São Paulo, está na minha frente.
- Doutor Camacho,
quanto tempo! Que prazer revê-lo!
- O prazer é meu,
Professor. Sabe o que eu vim fazer aqui?
- Me visitar, é
óbvio.
- Sim, mas também
pagar uma dívida.
- Que dívida?
- Você se lembra que
uma vez você me emprestou dinheiro para eu comprar uns livros de direito
comercial? O meu chefe tinha me pedido para eu estudar um caso em que ele tinha
trabalhado anos antes e eu não podia comprá-los com o meu salário.
Menti que não lembrava.
- Não lembro.
- Bom, eu lembro. Eu
vim pagar.
- Como eu não
lembro, não vou receber. Quer um uísque?
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