A pedidos, mais uma das minhas inesquecíveis (para mim, é claro) histórias dos meus tempos de aluno e professor.
6. DE COMO DEI
PINDURA NO EXTERIOR
Em 66 eu fui para a
Argentina com o Sérgio. Eu tinha 19 anos e o Sérgio 21 ou 22. Ele era negro,
usava óculos fundo de garrafa, de lentes esverdeadas tão grossas que o faziam
ficar com cara de sapo. Mas ele compensava sabendo de cor a letra de tudo que
era samba, de Noel Rosa a Martinho da Vila.
O que tornava o Sérgio
um sujeito singular não era aquela cara de batráquio – no bom sentido, claro –
mas sim o slack que ele usava. Não
sabem o que é um slack? Procurem na
internet uma foto do Jânio Quadros vestido como quem está indo para um safári.
Aquilo é um slack.
Pois o Sérgio usava
um. E mesmo assim nós embarcamos num ônibus, rumo a Porto Alegre. Estávamos no
segundo ano da São Francisco e fazíamos – que Deus me perdoe – parte do Coral
da Faculdade. Levávamos na bagagem cartas de recomendação, assinadas pelo
presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto e pelo maestro do Coral, com a vã
esperança de conseguir uma apresentação do Coral em Buenos Aires. Com tudo pago
pelos argentinos, por supuesto.
Chegando em Porto
Alegre, fomos para a Casa do Estudante, na rua Riachuelo. Deixamos as malas lá
e nos dirigimos – quanta cara de pau! – para o Palácio Piratini, sede do
governo estadual, para tentar descolar um hotel de graça. Fomo atendidos por um
oficial fardado, chefe do cerimonial, que olhou rapidamente nossas ‘credenciais’
e nos despachou sem cerimônia:
- Bah! Vocês estão
pensando o quê, che?
Saímos de lá e
resolvemos dar um pindura no almoço, ainda que estivéssemos em fevereiro e não
em agosto. Não entenderam? Calma que eu explico. Todo ano, no dia 11 de agosto,
os alunos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, para comemorar o
início dos cursos jurídicos no Brasil, em 1827, se acham no direito de entrar
num restaurante, comer e beber do bom e do melhor e não pagar, dizendo para o
garçom pendurar a conta. Isso de vez em quando acaba mal, com quebra-quebra,
polícia e o diabo.
Pois bem. Eu e o Sérgio
entramos em uma churrascaria, pedimos um espeto gaúcho “daqueles”, vinho de
Bento Gonçalves e quando nos sentimos satisfeitos, chamamos o garçom e pedimos
uma laranjada. No que ele voltou para o fundo do restaurante, nós saímos
correndo, dobrando a cada esquina para despistar. Com os bofes de fora,
acabamos dando no Rio Guaíba.
Maravilha, mas e as
cartas de apresentação? Tínhamos deixado os envelopes, com nossos nomes, RG
etc. em cima da mesa. O que fazer? Eram mais ou menos duas horas da tarde e
nosso ônibus para Montevideo saía às dez da noite.
O jeito era voltar
para a Casa do Estudante, que, aliás, não ficava longe da churrascaria, e
tentar pagar a conta lá mesmo. Tínhamos certeza de que eles já estariam nos
esperando.
Para nossa surpresa,
não havia ninguém. Nem polícia, nem gerente, nem garçom, nada. Pegamos nossas
malas e rumamos para a Rodoviária. Deixamos as malas lá, mas tiramos uma muda
de roupa cada um e nos registramos, com nomes falsos, num hotelzinho qualquer
nos arredores da estação.
Lá tomamos banho,
fizemos uma tremenda bagunça no quarto e saímos, dizendo ao porteiro que íamos
buscar o resto da nossa bagagem.
Entramos num cinema,
vimos um filme horroroso com Victor Mature e lá pelas nove da noite fomos para
a Rodoviária.
Em Montevideo,
também demos um pindura. Foi na última noite e já tínhamos fechado a conta do
hotel. Saímos para jantar, comemos, bebemos e fugimos. Só que o garçom e o dono
do restaurante vieram atrás de nós. Nos escondemos no jardim de uma casa e
ficamos agachados lá por horas, com um maldito cachorro que não parava de latir
no quintal. Um frio danado. Quando finalmente saímos, não tínhamos para onde
ir. Ficamos perambulando pela cidade, entrando em saguões de hotel para fugir
do frio, esperando o dia clarear. No avião (foi a primeira vez que andei de
avião) que nos levou até Buenos Aires chovia dentro. Juro! Caíam umas gotinhas
mais do que suspeitas.
Em Buenos Aires,
fizemos amizade com alguns estudantes de direito de lá. Falamos sobre o pindura
e eles, que não conheciam essa nossa nada edificante tradição, ficaram
encantados com a ideia. Resolvemos dar um pindura num restaurante de esquina,
com mesinhas na calçada. Comemos dúzias de empanadas e tomamos vinho.
- Quando o farol
estiver prestes a fechar, a gente sai correndo em ziguezague, comprende?
Eu e o Horácio fomos
para um lado, o Sérgio e o Rubén para o outro.
- É agora, vamos!
Saí correndo, dobrei uma esquina, dobrei mais uma e perdi o Horácio de vista. O
combinado era se encontrar mais tarde no Politeama, um café na Corrientes,
reduto dos estudantes de direito da Capital.
Mais ou menos uma
hora depois eu cheguei. O Sérgio, o Rubén e mais alguns rapazes me receberam
efusivamente.
- Y Horacio? perguntaram todos.
Meia hora mais tarde
chegou o Horácio. Estava pálido, sem óculos e sem um anel. Acontece que ele
tinha um problema na perna e não podia correr muito. Para não estragar a
brincadeira, não disse nada. Foi agarrado na primeira esquina. Como não tivesse
dinheiro suficiente para pagar a conta, tomaram-lhe o anel e os óculos.
- Por Diós, Horácio, por qué no dijiste nada?
Horácio sorriu e não
respondeu. Fizemos uma vaquinha para juntar o dinheiro da conta e prometemos ir
com ele ao restaurante no dia seguinte. Eu e o Sérgo não fomos.
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