sexta-feira, 21 de novembro de 2014

TEMPOS DE ESCOLA

A pedidos, mais uma das minhas inesquecíveis (para mim, é claro) histórias dos meus tempos de aluno e professor.

6. DE COMO DEI PINDURA NO EXTERIOR
Em 66 eu fui para a Argentina com o Sérgio. Eu tinha 19 anos e o Sérgio 21 ou 22. Ele era negro, usava óculos fundo de garrafa, de lentes esverdeadas tão grossas que o faziam ficar com cara de sapo. Mas ele compensava sabendo de cor a letra de tudo que era samba, de Noel Rosa a Martinho da Vila.
O que tornava o Sérgio um sujeito singular não era aquela cara de batráquio – no bom sentido, claro – mas sim o slack que ele usava. Não sabem o que é um slack? Procurem na internet uma foto do Jânio Quadros vestido como quem está indo para um safári. Aquilo é um slack.
Pois o Sérgio usava um. E mesmo assim nós embarcamos num ônibus, rumo a Porto Alegre. Estávamos no segundo ano da São Francisco e fazíamos – que Deus me perdoe – parte do Coral da Faculdade. Levávamos na bagagem cartas de recomendação, assinadas pelo presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto e pelo maestro do Coral, com a vã esperança de conseguir uma apresentação do Coral em Buenos Aires. Com tudo pago pelos argentinos, por supuesto.
Chegando em Porto Alegre, fomos para a Casa do Estudante, na rua Riachuelo. Deixamos as malas lá e nos dirigimos – quanta cara de pau! – para o Palácio Piratini, sede do governo estadual, para tentar descolar um hotel de graça. Fomo atendidos por um oficial fardado, chefe do cerimonial, que olhou rapidamente nossas ‘credenciais’ e nos despachou sem cerimônia:
- Bah! Vocês estão pensando o quê, che?
Saímos de lá e resolvemos dar um pindura no almoço, ainda que estivéssemos em fevereiro e não em agosto. Não entenderam? Calma que eu explico. Todo ano, no dia 11 de agosto, os alunos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, para comemorar o início dos cursos jurídicos no Brasil, em 1827, se acham no direito de entrar num restaurante, comer e beber do bom e do melhor e não pagar, dizendo para o garçom pendurar a conta. Isso de vez em quando acaba mal, com quebra-quebra, polícia e o diabo.
Pois bem. Eu e o Sérgio entramos em uma churrascaria, pedimos um espeto gaúcho “daqueles”, vinho de Bento Gonçalves e quando nos sentimos satisfeitos, chamamos o garçom e pedimos uma laranjada. No que ele voltou para o fundo do restaurante, nós saímos correndo, dobrando a cada esquina para despistar. Com os bofes de fora, acabamos dando no Rio Guaíba.
Maravilha, mas e as cartas de apresentação? Tínhamos deixado os envelopes, com nossos nomes, RG etc. em cima da mesa. O que fazer? Eram mais ou menos duas horas da tarde e nosso ônibus para Montevideo saía às dez da noite.
O jeito era voltar para a Casa do Estudante, que, aliás, não ficava longe da churrascaria, e tentar pagar a conta lá mesmo. Tínhamos certeza de que eles já estariam nos esperando.
Para nossa surpresa, não havia ninguém. Nem polícia, nem gerente, nem garçom, nada. Pegamos nossas malas e rumamos para a Rodoviária. Deixamos as malas lá, mas tiramos uma muda de roupa cada um e nos registramos, com nomes falsos, num hotelzinho qualquer nos arredores da estação.
Lá tomamos banho, fizemos uma tremenda bagunça no quarto e saímos, dizendo ao porteiro que íamos buscar o resto da nossa bagagem.
Entramos num cinema, vimos um filme horroroso com Victor Mature e lá pelas nove da noite fomos para a Rodoviária.
Em Montevideo, também demos um pindura. Foi na última noite e já tínhamos fechado a conta do hotel. Saímos para jantar, comemos, bebemos e fugimos. Só que o garçom e o dono do restaurante vieram atrás de nós. Nos escondemos no jardim de uma casa e ficamos agachados lá por horas, com um maldito cachorro que não parava de latir no quintal. Um frio danado. Quando finalmente saímos, não tínhamos para onde ir. Ficamos perambulando pela cidade, entrando em saguões de hotel para fugir do frio, esperando o dia clarear. No avião (foi a primeira vez que andei de avião) que nos levou até Buenos Aires chovia dentro. Juro! Caíam umas gotinhas mais do que suspeitas.
Em Buenos Aires, fizemos amizade com alguns estudantes de direito de lá. Falamos sobre o pindura e eles, que não conheciam essa nossa nada edificante tradição, ficaram encantados com a ideia. Resolvemos dar um pindura num restaurante de esquina, com mesinhas na calçada. Comemos dúzias de empanadas e tomamos vinho.
- Quando o farol estiver prestes a fechar, a gente sai correndo em ziguezague, comprende?
Eu e o Horácio fomos para um lado, o Sérgio e o Rubén para o outro.
- É agora, vamos! Saí correndo, dobrei uma esquina, dobrei mais uma e perdi o Horácio de vista. O combinado era se encontrar mais tarde no Politeama, um café na Corrientes, reduto dos estudantes de direito da Capital.
Mais ou menos uma hora depois eu cheguei. O Sérgio, o Rubén e mais alguns rapazes me receberam efusivamente.
- Y Horacio? perguntaram todos.
Meia hora mais tarde chegou o Horácio. Estava pálido, sem óculos e sem um anel. Acontece que ele tinha um problema na perna e não podia correr muito. Para não estragar a brincadeira, não disse nada. Foi agarrado na primeira esquina. Como não tivesse dinheiro suficiente para pagar a conta, tomaram-lhe o anel e os óculos.
- Por Diós, Horácio, por qué no dijiste nada?

Horácio sorriu e não respondeu. Fizemos uma vaquinha para juntar o dinheiro da conta e prometemos ir com ele ao restaurante no dia seguinte. Eu e o Sérgo não fomos.

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