segunda-feira, 17 de novembro de 2014

TEMPOS DE ESCOLA

17. DE COMO MINHA MÃE ME ENSINOU O ABECEDÁRIO (OU PARTE DELE)
Minha mãe era russa. Meu pai também. Eu nunca duvidei disso. E por que duvidaria? Acontece que, quando ela morreu, eu, meu irmão e minha irmã tivemos que pegar os documentos dela, que ficavam guardados numa escrivaninha trancada a sete chaves. Eu nunca tinha visto esses documentos. Entre fotos antigas de gente que nenhum de nós três conhecia, estava o passaporte com o qual Fryda Bojarska, seu nome de solteira, tinha entrado no Brasil em 1934. Polonesa!
Como era possível isso? Grodno, a cidade natal dela, fica bem perto da fronteira entre a Bielorrússia e a Polônia. A cada guerra a fronteira mudava de lugar e ora a cidade pertencia a um país ou outro. Hoje, ela faz parte da Bielorrússia.
Parece que minha tinha muito orgulho de sua nacionalidade. Eu digo ‘parece’, porque minha mãe quase nunca falava sobre seu passado e é por isso que eu sei tão pouco sobre sua vida.
- Mãe, eu reclamava, a senhora nunca conta nada sobre seus pais, seus irmãos...
- Não olha pra trás, dizia ela. Olha pra frente, olha pros seus filhos, não pros seus avós.
Uma vez ela disse que ‘sabia falar russo sem nenhum sotaque.’
- É claro, eu respondi. A senhora é russa.
Ela apenas sorriu e não disse mais nada.
De qualquer forma, russa, bielorrussa ou polonesa, minha mãe nunca aprendeu a falar português direito. Um dia, ela disse:
- Pega o caderninho de telefone e liga para o encanador. Tem um vazamento no tanque.
Eu peguei o caderninho e fui, é claro, olhar na letra E. O telefone do encanador não estava lá. Olhei então a letra I, de “incanador”. Nada.
- Mãe, não achei o telefone. Será que a senhora não pôs o número na letra do nome dele? Como ele se chama?
- É o seu Constantino. Lembra dele? Ele morou na nossa rua durante muitos anos.  
Olhei o caderninho de novo. Na letra C, não aparecia o seu Constantino.
- Mãe, não sei onde a senhora anotou o número do encanador.
- Me dá o caderno.
Ela folheou rapidamente o caderninho e me mostrou.
- Tá aqui, ó, bem no começo da página.

Eu olhei. E estava mesmo. No comecinho da página K. Kanador.

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