domingo, 30 de novembro de 2014

TEMPOS DE ESCOLA

DE COMO VIREI PROFESSOR DE CURSINHO
Um dia, em fevereiro de 66, eu fui ao cinema. Cine Bijou, na Praça Roosevelt. Era um cineminha acanhado, onde assisti a alguns dos filmes mais marcantes da minha vida, como ‘O último tango em Paris’, ‘Laranja mecânica’, ‘A classe operária vai ao paraíso’ e principalmente ‘O grande crime’, para mim o melhor filme de guerra jamais feito. Aliás, o melhor filme jamais feito. Gosto não se discute. O título original é ‘Non uccidere’ (Não matarás), com música de Charles Aznavour. A cena em que um padre é obrigado por um oficial nazista a fuzilar dois rapazes cujo “crime” foi pichar paredes é uma das mais fortes de que me lembro.
Bom, na saída do cinema, eu encontrei o Júlio, que estava entrando para ver a sessão seguinte.  O Júlio Lerner tinha sido, dois anos antes, meu professor de psicologia no Curso Tolosa, que preparava alunos para o vestibular da São Francisco. Mais tarde, ele trabalhou na TV Cultura de São Paulo, como apresentador e repórter.
Ele tinha tanta certeza de que eu ia passar no vestibular, e eu tinha tanto medo de não passar, que nós fizemos uma aposta: se eu passasse, ele iria me depilar inteiro no pátio da Faculdade. Detalhe: o Júlio era aluno da São Francisco. Acho que ele não chegou a se formar, porque um dia, durante uma aula de Direito Romano, o professor flagrou-o adulterando o nome do livro: em vez de ‘Manual de Direito Romano’, de Alexandre Correia, o Júlio alterou o título para ‘Manuel de Direito Romano’. O autor do livro era o pai do professor.
Eu fui aprovado mas o Júlio, generoso, não cobrou a aposta. Teria sido um trote histórico dentro das Arcadas, a velha e sempre nova Academia.
Bom, como eu ia dizendo, na saída do cinema, eu vi o Júlio na fila de entrada e disse, despretenciosamente:
- E aí, Júlio, o Tolosa está precisando de professor de inglês?
E não é que ele respondeu:
- Está. O Toninho vai sair. Liga pra ele
O Toninho era o professor de inglês. No dia seguinte, liguei para o Geraldo Tolosa, professor de português e dono do cursinho. Marcamos uma hora. Ele se lembrava de mim. Entrevistou-me rapidamente e me levou até a porta do curso. Sabe onde era o curso? No Pátio do Colégio, berço da cidade de São Paulo! Com a mão nas minhas costas, ele apontou para a rua Boa Vista e disse:
- Está vendo aquela placa amarela? É uma livraria. Vá lá e veja o que eles têm em estoque. Se você achar um título em inglês com mais ou menos 200 volumes, faça a reserva em meu nome e eu mais tarde passo lá para acertar com eles.
Eu fui. O único livro naquelas condições era ‘Boswell’s Life of Johnson’, a biografia de Samuel Johnson, poeta, lexicógrafo e crítico, escrita por seu secretário e fiel escudeiro James Boswell. É um catatau de mais de 300 páginas, escritas num inglês do século XVIII.
Esse foi o “material didático” que eu usei no meu primeiro ano como professor. Não havia apostilas naquele tempo. Teve de ser o Boswell mesmo.
Eu tinha então 19 anos. Havia duas turmas no período da manhã e uma à noite. Nessa turma à noite eu era o mais jovem. Todos os alunos tinham mais idade do que eu. Quando a aula acabava, eu respirava aliviado, me achando o próprio Shakespeare.
Perdoe-me a empáfia, caro e raro leitor, eu só tinha 19 anos. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário