DE COMO VIREI
PROFESSOR DE CURSINHO
Um dia, em fevereiro
de 66, eu fui ao cinema. Cine Bijou, na Praça Roosevelt. Era um cineminha
acanhado, onde assisti a alguns dos filmes mais marcantes da minha vida, como
‘O último tango em Paris’, ‘Laranja mecânica’, ‘A classe operária vai ao
paraíso’ e principalmente ‘O grande crime’, para mim o melhor filme de guerra
jamais feito. Aliás, o melhor filme jamais feito. Gosto não se discute. O
título original é ‘Non uccidere’ (Não matarás), com música de Charles Aznavour.
A cena em que um padre é obrigado por um oficial nazista a fuzilar dois rapazes
cujo “crime” foi pichar paredes é uma das mais fortes de que me lembro.
Bom, na saída do
cinema, eu encontrei o Júlio, que estava entrando para ver a sessão seguinte. O Júlio Lerner tinha sido, dois anos antes,
meu professor de psicologia no Curso Tolosa, que preparava alunos para o
vestibular da São Francisco. Mais tarde, ele trabalhou na TV Cultura de São
Paulo, como apresentador e repórter.
Ele tinha tanta
certeza de que eu ia passar no vestibular, e eu tinha tanto medo de não passar,
que nós fizemos uma aposta: se eu passasse, ele iria me depilar inteiro no
pátio da Faculdade. Detalhe: o Júlio era aluno da São Francisco. Acho que ele
não chegou a se formar, porque um dia, durante uma aula de Direito Romano, o
professor flagrou-o adulterando o nome do livro: em vez de ‘Manual de Direito
Romano’, de Alexandre Correia, o Júlio alterou o título para ‘Manuel de Direito
Romano’. O autor do livro era o pai do professor.
Eu fui aprovado mas
o Júlio, generoso, não cobrou a aposta. Teria sido um trote histórico dentro
das Arcadas, a velha e sempre nova Academia.
Bom, como eu ia
dizendo, na saída do cinema, eu vi o Júlio na fila de entrada e disse, despretenciosamente:
- E aí, Júlio, o
Tolosa está precisando de professor de inglês?
E não é que ele
respondeu:
- Está. O Toninho
vai sair. Liga pra ele
O Toninho era o
professor de inglês. No dia seguinte, liguei para o Geraldo Tolosa, professor
de português e dono do cursinho. Marcamos uma hora. Ele se lembrava de mim.
Entrevistou-me rapidamente e me levou até a porta do curso. Sabe onde era o
curso? No Pátio do Colégio, berço da cidade de São Paulo! Com a mão nas minhas
costas, ele apontou para a rua Boa Vista e disse:
- Está vendo aquela
placa amarela? É uma livraria. Vá lá e veja o que eles têm em estoque. Se você
achar um título em inglês com mais ou menos 200 volumes, faça a reserva em meu
nome e eu mais tarde passo lá para acertar com eles.
Eu fui. O único
livro naquelas condições era ‘Boswell’s Life of Johnson’, a biografia de Samuel
Johnson, poeta, lexicógrafo e crítico, escrita por seu secretário e fiel
escudeiro James Boswell. É um catatau de mais de 300 páginas, escritas num
inglês do século XVIII.
Esse foi o “material
didático” que eu usei no meu primeiro ano como professor. Não havia apostilas
naquele tempo. Teve de ser o Boswell mesmo.
Eu tinha então 19
anos. Havia duas turmas no período da manhã e uma à noite. Nessa turma à noite
eu era o mais jovem. Todos os alunos tinham mais idade do que eu. Quando a aula
acabava, eu respirava aliviado, me achando o próprio Shakespeare.
Perdoe-me a empáfia,
caro e raro leitor, eu só tinha 19 anos.
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