terça-feira, 23 de dezembro de 2014

TEMPOS DE ESCOLA

11. DE COMO O CAMACHO ME PAGOU
No 5º ano da São Francisco, eu já dava aula, aliás um monte de aula. Por isso, já estava ganhando um dinheirinho que me permitiu, inclusive, comprar um carro. Um Fusca 65, cujo motor fundiu numa viagem a Caraguatatuba no carnaval de 68.
O Camacho era meu colega de turma. Chegamos a dar pindura algumas vezes. Mas o Camacho era um intelectual e um durango, o que, convenhamos, são duas qualidades que costumam andar juntas. Os nossos pinduras não eram em restaurantes, eram em livrarias. Entrávamos, mostrávamos nossas carteirinhas da Faculdade e anunciávamos nosso desejo.
- Podem escolher um livro cada daquela prateleira lá, dizia o gerente.
- Desculpe, argumentava com educação e voz baixa o Camacho, mas o senhor não entendeu. Nós somos estudantes, no ano que vem seremos advogados e precisamos de livros bons, úteis, livros que...
- Mas isso é o fim da picada!
- Veja bem, encare esta doação como um investimento. No ano que vem nós, já formados, não poderemos mais dar pindura. Ou seja, nós seremos seus clientes – e clientes fiéis, entende?
Conseguimos bons livros, eu e o Camacho.
Ele trabalhava num escritório de advocacia. Ganhava pouco. E conversávamos sobre isso.
- E se a gente, nós dois, com a cara e com a coragem, montarmos um escritório?
- Camacho, não dá. Eu já estou dando aula, estou ganhando bem, eu não vou largar meus empregos (eram duas ou três escolas, tudo ao mesmo tempo) para me meter, desculpe, numa aventura. Já pensou? Alugar uma ou duas salas, mobiliar, comprar uma linha telefônica, contratar uma secretária...e depois ficar esperando que apareça algum cliente. Quanto tempo a gente ficaria pastando até conseguir fazer um nome? Não, não. Não conte comigo. Você vai ter que se virar sozinho.
Muito bem. O ano acabou, a gente se formou, cada um seguiu sua vida.
Seis, sete ou dez anos mais tarde, num domingo de manhã, o interfone tocou.
- É o dr. Camacho.
- Quem?
- Dr. Camacho.
- Mande subir.
Segundos depois, a campainha toca, eu abro a porta e eis que o velho Camacho, agora de bigode, hoje um dos maiores advogados comercialistas de São Paulo, está na minha frente.
- Doutor Camacho, quanto tempo! Que prazer revê-lo!
- O prazer é meu, Professor. Sabe o que eu vim fazer aqui?
- Me visitar, é óbvio.
- Sim, mas também pagar uma dívida.
- Que dívida?
- Você se lembra que uma vez você me emprestou dinheiro para eu comprar uns livros de direito comercial? O meu chefe tinha me pedido para eu estudar um caso em que ele tinha trabalhado anos antes e eu não podia comprá-los com o meu salário.
Menti que não lembrava.
- Não lembro.
- Bom, eu lembro. Eu vim pagar.

- Como eu não lembro, não vou receber. Quer um uísque?

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