terça-feira, 11 de outubro de 2016

Sou mesoclítico





Tudo que sei da ‘última flor do Lácio, inculta e bela’, aprendi com o Tolosa, professor de português do Cursinho do mesmo nome, com o Pina, professor de latim do Colégio Estadual Presidente Roosevelt e com mestres como Camilo, Eça, Machado, Lobato, Pessoa, Graciliano e Bilac, entre outros – todos eles familiarizados com as ciladas da colocação pronominal.

Ao contrário do que se pensa, a mesóclise não é contemporânea à extinção dos dinossauros. Ela só passou a ser usada muitos milênios depois, quando o Império Romano já estava em seus estertores e a língua falada em suas diversas ex-províncias parecia-se cada vez menos com o latim castiço de Cícero e Virgílio.

O que aconteceu foi mais ou menos o seguinte: o futuro do presente (antes denominado ‘futuro do indicativo’) e o futuro do pretérito (que atendia pelo ridículo* nome de ‘condicional’), passaram por uma transformação lá pelo século V ou VI d.C..
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Estes dois tempos verbais, que no latim eram sintéticos, isto é, formados de uma só palavra, foram aos poucos substituídos por formas analíticas, ou seja, duas palavras: o infinitivo do verbo principal + o verbo habere. Isso significa que ‘falarei’, por exemplo, deriva remotamente de ‘falar + hei’. Ainda é possível, para quem tiver infinita paciência, encontrar em velhíssimos alfarrábios coisas do arco da velha, tais como falarhei, ou falarhia.

Por serem formas compostas, estes tempos verbais admitiam a colocação dos pronomes oblíquos entre elas. A este fenômeno linguístico, que, parece, só existe na nossa língua, deu-se o nome de mesóclise.

Seguem alguns exemplos edificantes:

1.   Seria dele mesmo a ideia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor...? (Machado de Assis, O Alienista)

2.   Dir-se-ia que o anjo da bonança distendera suas asas de ouro por sobre a casa triste. (Monteiro Lobato, O Comprador de Fazendas)

3.   Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava, pendente de um arame. O ouvido tê-lo-ia, talvez, atento a um assobio da ventania. (Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição)

4.   Dar-lhe-ei conta da resposta de Lello logo que a receber. (Eça de Queiroz, carta a Ramalho Ortigão)

5.   Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me. Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha. E as duas letras amansaram. Gaguejei sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniam, formavam sentenças graves, arrevessadas, que me atordoavam. Certamente meu pai usara um horrível embuste naquela maldita manhã, inculcando-me a excelência do papel impresso. Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os conceitos sisudos: “A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.”
Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as linhas em negrita, resuma da ciência anunciada por meu pai.
– Mocinha, quem é o Terteão?

6.   Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia. (Jânio Quadros, a respeito do uísque)

7.   Queres mesmo saber? Di-lo-ei, pois: Renunciei, porque a comida do Palácio era uma merda, igual a esta de tua casa. (Jânio, de novo, respondendo a uma pergunta sobre as razões de sua renúncia).

* O termo ‘condicional’ ainda subsiste em línguas secundárias, sem nenhuma tradição literária, como o inglês (conditional), o espanhol (condicional), o francês (conditionnel) e o italiano (condizionale). Os nossos gramáticos o abominam  – que absurdo! – preferem a “clareza” do ‘futuro do pretérito’ a essa coisa complicada, que é o ‘condicional’.


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