TEMPOS DE ESCOLA
20. DE COMO EU
CONHECI O PINA
Aos quinze anos eu
entrei no clássico. Para quem não nasceu no século passado, é preciso
esclarecer que naquela época, depois de terminar o ginásio (a 9ª série do
ensino fundamental), a gente ia ou para o científico, para quem queria ser
médico ou engenheiro, ou para o clássico, para quem queria ser advogado. Não
havia praticamente outra opção além de médico, engenheiro ou advogado.
Magistério, odontologia, agronomia ou arquitetura eram exceções.
O colégio para onde
eu fui era novo. Eu tinha saído de uma escola que ‘parava no ginásio’ e
precisei fazer um exame de seleção para poder estudar no Colégio Estadual
Presidente Roosevelt.
As aulas começavam
em março naquele tempo. No segundo ou terceiro dia de aula, entrou na sala o
professor de latim: Segismundo Corrêa Pina, que hoje é nome de escola em
Itaquera.
O Prof. Pina era um
senhor de uns sessenta anos, careca e meio barrigudinho. Seus olhos azuis, mais
frios que o inverno do Alasca, nos fitavam por detrás de óculos sem aro. Usava
ternos escuros, sempre de gravata e sapatos de solado grosso que lhe aumentavam
a altura em vários centímetros.
Tinha alergia a giz.
Por isso, sempre pedia o auxílio de um ‘secretário’, que se encarregava de
escrever na lousa o que ele eventualmente ditava. Ao contemplar uma frase
qualquer escrita – por exemplo, Ad
augusta per angusta, que significa mais ou menos ‘A lugares elevados por caminhos estreitos’ - seu amor pelo latim
fazia-o dizer entusiasmado coisas do tipo “Sintam a seiva viva que percorre
estas palavras!”
Era severíssimo. Uma
simples silabada acarretava um zero, o que dividia a nota da sabatina por dois.
Faz-se necessária aqui mais uma explicação. Uma não, duas:
- sabatina era o
nome da prova mensal. Não havia outro tipo de avaliação, como trabalhos,
participação em aula ou chamada oral. Era uma prova escrita por mês e só;.
- e a silabada nada
mais era do que a pronúncia errada de uma determinada palavra. Por exemplo, se
um aluno dissesse ‘popúlus’, como paroxítona, em vez de ‘pópulus’, proparoxítona,
o Pina exclamava “Oh, jovem!”, pegava a caneta e marcava um zero para o infeliz.
Ressalte-se que em latim não há acento, de modo que se, a palavra tem mais de
duas sílabas, ou você sabe como pronunciá-la ou reza na hora de chutar. Um
grande amigo meu, hoje professor de física, chutou errado e acabou perdendo o
ano por isso.
Bem, nos primeiros
dias de março de 1962 – sim, amiguinhos, eu sou velho paca – o homem entrou na
classe. Depositou sobre a mesa sua enorme mala e ficou olhando para cada um de
nós, sem falar nada, com um sorrisinho no rosto. Após quatro horas – assim me
pareceu, embora na realidade aquele silêncio não tivesse passado de segundos –
ele pediu um ‘secretário’. Apresentou-se a Lucy, que mais tarde eu vim a saber
que era repetente.
- Camões, disse ele.
E sem mais nem menos
ditou uma estrofe de um soneto do grande poeta lusitano:
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram.
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor somente.
- Agora vamos dizer
isso em latim.
E teve início uma
saraivada de explicações sintáticas, entremeadas de acusativo aqui, dativo lá,
ablativo acolá e o resultado, que eu sei de cor até hoje, ficou assim:
Errores mei, mala fortuna, amor
ardens
In perditionem meam inter se
coniuraverunt..
Errores et fortuna superaverunt,
Quia mihi amor solus erat.
Será que existe hoje
em dia algum professor capaz de causar uma impressão tão profunda no aluno que,
cinquenta anos depois, ele ainda se lembre da aula, da sua primeira aula?
Grande Pina!
Inesquecível Pina!